Artigo de opinião

Uma das faces mais feias da pandemia: o trabalho infantil

A América Latina e o Caribe esperava ser a primeira região do mundo a erradicar a exploração de crianças até 2025. A COVID-19 ameaçou esse objetivo.

Notícias | 21 de Junho de 2021
Por Jean Gough e Vinícius Pinheiro (*)

Elizabeth acorda às 4 da manhã todos os dias para trabalhar como vendedora de panos nas ruas da cidade de La Paz, na Bolívia. Ela sai de manhã bem cedo com sua mãe, que engraxa sapatos. Ela tem apenas nove anos e frequentou as aulas até que sua escola foi fechada no ano passado por causa da pandemia. Agora, devido às condições econômicas da família, ela trabalha para contribuir de alguma forma com sua escassa renda. “Minha filha não está estudando agora porque não tem como acompanhar as aulas virtuais. O único telefone que tenho é muito antigo, sem falar que a internet é muito cara e funciona mal ”, diz a mãe um tanto desconsolada.

Elizabeth é uma das mais de oito milhões de crianças que trabalham na América Latina e Caribe, onde aumentou o número de famílias com baixa renda ou perda de emprego devido à COVID-19, e que têm recorrido ao trabalho infantil como mecanismo de sobrevivência. Apesar da diminuição deste na região em 2,3 milhões entre 2016 e 2020, estima-se que a crise provocada pela pandemia possa reverter esta tendência positiva. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), essa prática pode aumentar em até 326.000 mais crianças e adolescentes.

O trabalho infantil prejudica as crianças física e mentalmente, compromete sua educação, restringe seus direitos e limita suas oportunidades futuras. De acordo com o último relatório do UNICEF, há 100 milhões de crianças que ainda não recebem aulas presenciais. Milhares podem estar em risco de não retornar à escola por falta de recursos familiares e programas de apoio do Estado que auxiliem essas famílias para que não tenham que recorrer ao emprego de seus filhos e suas filhas.

A combinação de perda de empregos, aumento da pobreza e fechamento de escolas é uma tempestade perfeita para a proliferação desse tipo de exploração. Abandonar a escola e entrar no mercado de trabalho prematuramente reduz as chances de conseguir empregos melhores no futuro, perpetuando a armadilha da pobreza. Embora reconheçamos que houve avanços nas últimas duas décadas na região, os números da exploração de crianças ainda são muito altos e a crise social e econômica causada pela pandemia pode causar um retrocesso dramático se não houver ação prontamente.

Visto que muitas escolas ainda estão fechadas e famílias empobrecidas em situação de confinamento perderam renda por muitos meses, estamos vendo que mais meninos e meninas na região estão ingressando e continuarão a ingressar no trabalho infantil, também abandonando os estudos. A América Latina e o Caribe esperava ser a primeira região do mundo a erradicá-lo até 2025. A pandemia tornou essa meta cada vez mais difícil de ser alcançada. É provável que mais crianças e adolescentes em toda a região se juntem nos próximos meses, a menos que suas famílias recebam ajuda rapidamente.

Quando Elisabeth vai voltar para a escola? Talvez em alguns meses. Talvez nunca. O que sabemos é que quanto mais tempo dure o fechamento das escolas, mais riscos correm os meninos e as meninas mais vulneráveis de abandonar seus estudos. Agora é o momento de os governos aumentarem os gastos com serviços públicos e, especialmente, em proteção social. Deve-se garantir o acesso universal à educação gratuita e de boa qualidade e que as escolas devem ser reabertas de forma segura, com medidas de segurança e saúde que permitam proteger tanto seus alunos e suas famílias, quanto professores. Em tempos de pandemia, as escolas devem ser as últimas a fechar e as primeiras a reabrir.

Agora não é o momento de economizar. Ao contrário, é hora de investir em escolas para impulsionar a recuperação econômica de toda a região, garantindo melhores oportunidades para meninos, meninas e adolescentes.

Também é essencial garantir o trabalho decente para adultos e jovens em idade legal para trabalhar e dar atenção ao trabalho infantil na agricultura. Da mesma forma, é necessário promulgar leis que protejam melhor a infância, melhorar os sistemas de inspeção do trabalho, aplicar com eficácia os sistemas integrais de proteção ou fortalecê-los quando for necessário.

Nestes tempos de crise, todos os governos da América Latina e do Caribe estão sob pressão para cortar o investimento em educação. No entanto, agora não é hora de economizar. Ao contrário, é hora de investir nas escolas para impulsionar a recuperação econômica de toda a região, garantindo melhores oportunidades para crianças e adolescentes.

(*) Jean Gough é diretora regional do UNICEF para América Latina e o Caribe; Vinícius Pinheiro é diretor regional da OIT para América Latina e o Caribe. Artigo de opinião publicado em espanhol no jornal El País, em 21 de junho de 2021 (https://bit.ly/3j8DQvT)